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Como fecho a minha rua aos carros? Um manual. Newsletter 39.

>> EXEMPLO DO TEXTO QUE PODES ENVIAR À CML <<

Olá, Lisboetas Possíveis,

Descobrimos que fechar uma rua ao trânsito não tem que ser uma telenovela. Nesta newsletter, que demorei semanas a maturar, quero contar como qualquer uma de vocês pode fazê-lo. Mantenham a vossa papeleira por perto: vamos ter que mandar muitas ideias feitas para o lixo.

Há exatamente um mês, no dia 8 de julho, livrámos a Rua e a Travessa dos Mastros dos pópós por um dia. Durante treze horas seguidas, das dez da manhã até às onze da noite, este cantinho da freguesia da Misericórdia voltou a ser mágico.

Confesso que achávamos que a criança era uma forma biológica extinta no centro de Lisboa. Vê-las a correr e a brincar literalmente segundos depois de termos posto as grades deu-nos a sensação de milagre a acontecer. Então, como é que se constrói uma vara de condão?

🤟Podem responder a todas as nossas newsletters escrevendo para quero@lisboapossivel.pt. Se gostavam de partilhar este texto, aqui está o link direto.



Cuidado com as costas

Aposto que todas começamos com a mesma ideia: para fechar uma rua aos pópós, é preciso ir falar com a junta e a Câmara. Foi exatamente isto que fizemos: passámos um ano inteiro a apresentar a ideia do “SuperBairro por um Dia” a todas as vinte e quatro juntas de Lisboa, investindo horas infinitas do nosso tempo pessoal nas conversas – infecundas – com os políticos e funcionários.


Contexto:

Quem nos apoia há bastante tempo sabe que em setembro do ano passado quase conseguimos fazer um SuperBairro à volta da Praça das Flores com a junta de freguesia da Misericórdia. A experiência foi algo como um conto de Kafka adaptado por Hannah Arendt. Envolver a junta no trabalho com os cidadãos abriu um portal macabro para o passado salazarista e xenófobo. Vimos as nossas stories do Instagram censuradas, vivemos na pele o que é o ghosting administrativo, ouvimos “nós aqui em Portugal”. Depois de semanas de trabalho voluntário investido na criação e na comunicação do projeto, a junta não nos deixou fechar nenhuma – mas nenhuma – rua, embora o encontro com os vizinhos que na mesma organizámos entusiasmou-nos para continuarmos.

Apesar de termos combinado o puzzle completo de traumas com a junta da Misericórdia, insistimos. Continuámos a ter conversas com várias juntas na esperança quase cega de encontrar alguma campeã. Descobrimos um padrão curioso. Seja PSD (ex Santo António), seja PS (ex Campo de Ourique), fazem assim: falam convosco, depois de repente deixam de falar convosco, e depois até fazem aquilo que vocês propuseram na mesma, só que sem envolver a diversidade dos moradores e associações. Ou seja, sem a faísca da arte e da autenticidade. E tudo bem. Ficamos orgulhosos de termos conseguido deixar a farpa de ação na pele dos autarcas destas freguesias. Ao mesmo tempo, esta mundivisão infantilizada de que urbanismo é um zero sum game nos entristece.

Lá está: se vocês conseguirem convencer a vossa junta de que o win-win possa existir, e se quem está no poder condescender para trabalhar com vocês – força! Mas lembrem-se de que estar na posição da vénia durante muito tempo faz mal às costas.



Um bocado de realpolitik

Para obtermos resultados, temos que treinar o nosso pragmatismo. Portanto sugiro uma breve visita guiada às políticas municipais. Nas freguesias, o poder está consolidado nos partidos do centro. PS e PSD, pelo tamanho que têm – ou seja, pelos consensos internos que devem manter – acabam por ser conservadores. A vossa presidente da junta, não interessa se tem o retrogosto da esquerda ou da direita, sabe que para trazer a vitória ao partido nas próximas eleições, deve evitar os riscos e limitar-se a fazer as coisas garantidamente fofinhas (abram o jornal da vossa freguesia e observem as fotos com as velhinhas e com o Quim Barreiros no arraial).

Criar um SuperBairro e fechar as ruas ao trânsito é um grande risco. O conservadorismo estrutural das juntas não lhes permite fazer uma pesquisa séria da opinião pública para descobrir se os fregueses já evoluíram e querem um novo modelo urbano. Os presidentes preferem não tocar no assunto e manter as coisas tal como estão. É mais seguro seguir a opinião estabelecida. É prudente não liderar.

Porque liderar significa envolver os fregueses na política, propor ideias novas, debater, comunicar de forma audaz para acordar e para convencer – o que não traz sucesso garantido, e ainda por cima dá imenso trabalho.

Além disso, a consolidação do poder no centro alimenta prepotência institucionalizada. Mesmo os autarcas que tentam fazer projetos inovadores, fazem-os de cima para baixo, sem procurar aliados no meio dos moradores e das associações locais – e sem tentar evangelizar as novas ideias no meio de quem está contra.

Esta realidade política é um terreno fértil para os partidos mais pequenos, dispostos a lutar por cada voto.



Procurem o vosso partido

O Abril garantiu superpoderes aos partidos políticos: podem fazer ações onde, quando e como quiserem, é só avisar a polícia. Os cidadãos também podem: só que na prática ter o carimbo do partido significa que ninguém vai ousar chatear o vosso bom sono e podem dedicar todo o vosso tempo àquilo que interessa.

O partido Volt testemunhou as convulsões da nossa primeira tentativa de criar o SuperBairro na Praça das Flores. Escreveu para nós, sugerindo fecharmos a rua aos carros juntos. Do nosso lado, sempre vimos o Miguel, a Silke, o Vítor e o Duarte aparecer nos nossos meetups de bicicleta ou a pé. Era evidente que viviam aquilo que professavam. E foi assim: com um simples email, o Volt avisou a polícia que íamos fechar a Rua e a Travessa dos Mastros ao trânsito. Podíamos finalmente pensar só em dar mimos à nossa agenda cultural. Zero drama.

Recebemos muitas críticas sobre a nossa cooperação com o Volt. Até houve quem não gostasse da cor roxa do logo deles. Só que reparem: quando há um ano propusemos o projeto à junta da Misericórdia, no fundo não era tentar cooperar com o PS?

Percebemos este viés: é a primeira vez que um partido faz uma ação urbana sem a benção da junta. Isto foge ao padrão. E ainda bem, é um sinal de mudança. A nossa sincera esperança é que os outros partidos usem os próprios superpoderes para mostrar aos fregueses que outras ruas são possíveis.

Os partidos foram inventados para canalizar as vontades dos cidadãos. Se um par de pessoas com poder na junta não percebem o que é urbanismo, milhares de fregueses não deveríamos ficar atrasados por causa disso. Devemos procurar o partido, com a cor de logo que melhor nos agradar, para realizar as nossas ideias. A receita é simples: contactem o partido que consideram o vosso e proponham fechar uma rua juntos. Aproveitem a democracia.

Não tenham dúvidas: quando conseguirem envolver os vossos vizinhos numa bela ação, os da junta e da câmara estarão lá a ver as vossas stories e a ler os vossos tweets. Afinal, querem é os vossos votos. Vão tentar roubar a agenda e copiar – e tudo bem. Nós somos o afrodisíaco que ajuda os políticos locais a redescobrirem o amor pelos fregueses.



Procurem aliados no local

Aprendemos um truque brilhante com o Ton Salvadó, o ex-diretor do plano urbano de Barcelona e o pai das SuperIlles: proativamente convidar à conversa a todos os grupos locais, mesmo se não gostamos deles. Insistir no diálogo com quem está e não está de acordo connosco.

Sim, é questão de mera estatística que haverá quem não vai querer dialogar com vocês, façam o que fizerem. Este “não” está sempre garantido. Mas o lindo disso tudo é que a maioria das pessoas vão ficar felizmente surpreendidas que finalmente haja alguém quem queira tê-las em consideração. Assim, vocês vão poder sair da vossa bolha de prejuízos e revelar as verdadeiras motivações e objeções das pessoas – melhorando logo desde início a vossa proposta.

No nosso caso concreto, começámos com uma curiosidade: será que quem mora e trabalha na Rua da Silva (a famosa Green Street) está mais contente de quem mora e trabalha na Rua dos Mastros (igual em tudo à Rua da Silva, mas com trânsito)? Será que deveríamos criar o nosso SuperBairro a partir da Rua Verde? Começámos a falar com os comerciantes das ruas, e percebemos que os da Rua dos Mastros eram os mais frustrados e representavam um grupo motivado, com um interesse concentrado para fechar a rua ao trânsito. Tinham perdido 40% da facturação desde que a rua foi reaberta aos carros depois do covid, e estavam dispostos a cooperar e investir o tempo e recursos para a rua ficar pedonalizada. Como não é difícil perceber, encontrámos a nossa força organizadora.

O outro grupo fundamental eram os moradores. Para perceber o que eles pensam, com os comerciantes organizámos um churrasco na rua, convidando a todos para uma conversa e petiscos. Pessoalmente toquei em todas as campainhas da rua, reconfirmando o convite no próprio dia. Este churrasco foi revelador.

Muitos vizinhos começavam a conversa assim: “não vou assinar nada!”. Ao perguntar de que se tratava, explicavam que não queriam barulho, achavam que os comerciantes iam ter música durante todas as noites, ganhando dinheiro ao custo do sono deles. Ao contrário daquilo que pensávamos, quem não queria lixo e beatas eram os comerciantes, já que estavam cansados de varrer o que lhes caía das varandas acima. Durante o churrasco, os comerciantes e os moradores chegaram ao acordo que às 22.30 o volume da música tinha que baixar, para todos terem silêncio às 23h. Enquanto ao lixo, era difícil não concordar que tinha que ser um esforço comum.



Preparem a agenda

Como em qualquer relação, para evitar os mal-entendidos, o mais seguro é estabelecer as expectativas claras sobre os princípios base não-negociáveis. Todos percebemos que para deixar uma impressão duradoura, era fundamental termos zero plástico descartável, zero beatas, zero lixo e silêncio absoluto às 23h. Queríamos demonstrar na prática que é possível não dar nenhum trabalho às equipas de higiene. O melhor comentário veio dos pais de uma criança: para a próxima vez, pedir para a junta limpar as ruas antes do evento, porque era evidente que as crianças iam esfregar o chão.

Enquanto à agenda, perguntem aos aliados sobre o que eles querem ter no próprio espaço. O proprietário do restaurante chinês organizou uma leitura de poesia sínica e um mercado de livros sobre Ásia. O restaurante brasileiro teve um artista a tocar MPB. Nós trouxemos a ciência. Um debate sobre o clima com a Joana, a Ambientalista Imperfeita, e a Ana, a defensora dos oceanos. Uma banda folclórica ucraniana. Um workshop de fado ativista e um encontro de poetas à margem, cujos versos expandiram a Rua dos Mastros até Angola e os bairros esquecidos de Lisboa. Deixem os arraias aos funcionários das juntas – criem a agenda que vocês próprios vão adorar, e as pessoas que saibam apreciar a arte aparecerão.



Mas foi só um dia!

Chama-se urbanismo tático. Nós, sapiens, para desver a paisagem do costume, temos que viver na pele a alternativa. É por isso que insistimos na experiência direta dos vizinhos. Queremos que digam “ah, agora tou a ver!” Além disso, as marchas e os eventos fora do local do costume filtram as pessoas, só aparecem aquelas já convencidas, a mudança não chega para o imaginário de quem não costuma sair da própria rua. A probabilidade de sonhar em grande é maior após termos tido o gostinho.

Agora queremos a Rua e a Travessa dos Mastros Com Gente Dentro com regularidade.



É

Desde o nosso épico vídeo de carros a voar — até livrar a Rua e a Travessa dos Mastros dos pópós – passou um ano. Acabamos de vos demonstrar que é possível. Agora é a vossa vez. Partilhem este texto com as amigas, e se acham que aquilo que fazemos é importante, ajudem-nos com uma doação regular. Ou peçam uma t-shirt Cravo Bravo: além de impressionar a família no próximo jantar com muita pinta, ajudar-nos-ão a financiar as nossas ações.

Então, já sabem qual rua é que vão tornar possível?

Ksenia


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