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Em memória da Patrizia Paradiso

Tinha 37 anos e estava grávida de cinco meses. O senhor que a matou disse que tinha tido sol nos olhos. Se a velocidade máxima tivesse sido 30 km/h, se a ciclovia separada tivesse existido, se coletivamente não considerássemos estes homicídios meros “acidentes” que nem merecem uma punição, se…

Com o atropelamento mortal da Patrizia Paradiso começou o ativismo urbano para mim. Tínhamos a mesma idade, e facilmente poderia ter sido eu ali, na Avenida da Índia, no dia 26 de junho de 2021. Ao longo destes três anos descobri que entre os meus amigos havia pessoas que a conheciam de perto, que gostava dos mesmos músicos brasileiros que eu, e que, como eu, adorava ir aos festivais de danças tradicionais.

Também nestes três anos descobri que lançar uma petição para baixar a velocidade aos 30 km/h é algo que revela os piores demônios egoístas nas pessoas. Que nem uma morte acorda a cidade para finalmente construir as ciclovias prometidas, e que poucos meses depois da morte da Patrizia seria necessário lançarmos todo um movimento para salvar ciclovias. Que não há punição para quem mata, porque ter carro dá proteção divina numa sociedade “mas-todos-temos-carro”.

Fomos ver os números. Hoje, como todos os dias do ano, o INEM deve ter transportado uns 10 ciclistas feridos, e um em cada três terá sido grave, o que pode significar que a partir desta quarta-feira algumas pessoas à nossa volta vão ter que passar meses em coma, ficar sem crânio, perder a vista.

Apesar da morte da Patrizia e do seu bebé, nunca parámos de nos assassinar: nestes três anos foram mortos 79 ciclistas. Até o final deste ano, estatisticamente, a cada duas semanas vamos matar mais um ou uma ciclista. E essas mortes não são acidentes. Por favor intervenham quando alguém disser “acidente”. Não acontecem por acaso. São resultado direto do sistema de mobilidade que construímos. Até podemos já estimar quantos de nós vão morrer atropelados até o final do ano: dez.

Só que isso também significa que podemos evitar todas essas mortes. Sabemos exatamente o que deve ser feito, não há aqui mistérios.

  • A velocidade em todas as zonas urbanas deve ser reduzida ao máximo de 30 km/h. Assim, mesmo se um embate acontecer porque as pessoas são o que são, não será fatal. Se já assinaram a petição, peçam aos amigos https://lisboapossivel.pt/30kmh

  • As ciclovias devem ter o seu próprio espaço. Só a separação física garante a segurança. Quando alguém vos falar em zonas mistas, pensem na vossa criança ou mãe: deixavam-nas pedalar sozinhas, rodeadas de toneladas de metal? E sim, para que isso aconteça, temos que deixar de ter pensamento mágico: a maioria dos carros estacionados e em trânsito deve ser retirada para dar lugar a passeios dignos e ciclovias de verdade. Só assim, com este desarmamento societal à grande escala, vamos conseguir mudar a maneira como nos movemos.

  • Lombas, radares, canteiros, consequências reais para os condutores que não respeitam as regras. Quando ouvirem os políticos a falar da fluidez e da rapidez do trânsito automóvel, pensem em Patrizia. A única preocupação que deveríamos ter é zero mortes.

Quando não existir o medo de morrermos atropelados, vamos poder ser milhões a pedalar, fazendo bem a nós e ao planeta. É mesmo disso que fala o nosso vídeo, com a música escrita pela compositora Katerina L’dokova em memória da Patrizia Paradiso. Partilhem este link com os vossos amigos: https://youtu.be/V02A6-bDwUE?si=YO7tKmMvw68HnDOO

Dancem uma possível Gavotte de l’Aven pela Patrizia,

Ksenia


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Este texto foi enviado em formato de uma newsletter no dia 26 de junho 2024, na data do sinistro, a todos os nossos queridos Lisboetas Possíveis. Podes subscrever aqui, e para continuarmos com o nosso trabalho, podes apoiar-nos com uma doação mensal ou encomendando uma das épicas peças do Cravo Bravo.
2024-06-28 16:59