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A história da humanidade num só bairro: Mastros e a tirania dos 0,09%

Se comêssemos pizzas congeladas todos os dias, e apenas uma vez por ano tomássemos sopa de legumes, teríamos o corpo dos nossos sonhos? E se deixássemos de fumar apenas durante a romaria da Nossa Senhora dos Milagres?

Podíamos fazer as nossas manifestações pela pedonalização da Rua e da Travessa dos Mastros apenas num sábado de julho. E no resto do ano – Pepperoni e Salame com fumaça. Para nós, seria um desabafo urbanístico calmante. Para os políticos, um evento inofensivo, incapaz de organizar a comunidade para exigir mudanças. Um único sábado sensato num minúsculo bairro de Lisboa não cria novos hábitos no país que cada ano recebe mais 150 000 carros nas suas ruas.

Numa sociedade onde os principais partidos políticos são financiados pelo sector automóvel (pensem construção rodoviária, pensem a ponte de Vasco da Gama que obrigou as duas margens a comprar carro e pagar portagens, pensem ACP) e onde as pessoas estão intoxicadas com a propaganda das empresas de automóveis, podemos fazer alguma coisa para reverter esta avalanche de trânsito? Numa capital que nunca declarou que quer reduzir o número de carros, os cidadãos podem reconquistar as ruas?

Para encontrar as respostas a estas perguntas essenciais para o nosso ativismo, durante os meses de fevereiro, março e abril – cada fim de semana – fizemos as nossas manifestações na Rua e Travessa dos Mastros, tornando-as pedonais. Sabíamos que havia conflitos de interesses e jogos de poder, e entendíamos que íamos precisar de tempo para os descobrir e estudar.

Esta newsletter é um resumo de tudo o que aprendemos até agora sobre como pedonalizar o espaço público numa sociedade obcecada com o carro. Contém 17 mil caracteres. Levarão cerca de 10 minutos para a ler. Espero que sirva de guião para todos vocês que um dia vão ousar revolucionar a vossa rua, num equilíbrio entre realpolitik e sonho. Se gostarem, encaminhem para as pessoas que poderiam achar este texto útil. E saibam que podem sempre responder com ideias e sugestões escrevendo para quero@lisboapossivel.pt



Ação coletiva

Extrato de uma peça inexistente, cujos heróis são pura ficção.


O senhor Francisco tem saudades. No número 17 o seu primeiro salário livrou-o da virgindade. Nos números 26 e 73 costumava aperfeiçoar as ofensas à moral pública. Agora a rua dos Mastros já não presta: ficaram só restaurantes.


O que é que estamos realmente a fazer nos Mastros? No fundo, estamos a organizar os interesses e os recursos para um benefício comum – devolver o espaço hoje ocupado pelos carros às pessoas. Este processo tem um nome técnico – ação coletiva, que é uma das coisas mais frustrantes da existência das sociedades humanas.

Como demonstrou o economista e politólogo Mancur Olson que estudou o assunto, a lógica da ação coletiva não tem nada de simples ou intuitivo. Ele descobriu que as pessoas, apesar de terem um interesse comum, não agem de forma coletiva para atingi-lo, e não são as maiorias, mas as minorias que conseguem tiranizar e explorar a maioria.

O Olson explica que existem dois principais tipos de interesses: interesse concentrado e interesse difuso. O interesse concentrado aparece nos grupos reduzidos de pessoas, onde cada uma preocupa-se muito com o assunto. Quem costuma ter interesses difusos são grupos alargados, onde cada membro preocupa-se com o assunto – mas só um bocado.

Para o sucesso da nossa missão precisamos de um grupo coeso e preocupado – um grupo com o interesse concentrado para fazer o lobbying. Como estão distribuídos os interesses nos Mastros? Será que realmente temos este grupo?



Os comerciantes

Os comerciantes dos Mastros são treze negócios, com lucro a ter ou a perder no final do mês. Cada um vê a pedonalização como o tema central da própria existência económica, e claramente exibem características de um interesse concentrado.

1.Os oito restaurantes do bairro dependem do fluxo contínuo de pessoas. A percentagem pode variar, mas para simplificar as contas, a metade dos ganhos vêm dos regulares, e a outra metade – dos transeuntes que ao passear pela cidade acabam na rua, notam o estabelecimento, ficam curiosos, entram e convertem-se em clientes. Pedonalizar a rua significa criar conforto para quem caminha: em vez de fugir dos carros e sentir-se incomodadas, as pessoas podem estar à vontade, tomar o tempo necessário para tirar fotos, ver as vitrinas e, de consequência, ficar seduzidas pela oferta dos restaurantes.

As esplanadas claro que ajudavam a faturar mais. Quando faz bom tempo, são uma isca: é humano querermos ficar fora para aproveitar o ar fresco. Também aumentavam o número de pessoas que os restaurantes conseguiam servir. Mas achar que os donos só querem esplanadas é não perceber mesmo o negócio. Sem esplanadas, na rua pedonalizada, os restaurantes já ganham, porque ao sentirem-se protegidas e cômodas na rua, as pessoas abrandam o passo e matematicamente acabam por ficar.

A petição Pedonalizar Mastros nem pede esplanadas, porque a nossa ideia é ter ruas sem privatização do espaço, onde torne-se possível estar e brincar. Nem foi preciso negociar isso com os donos dos restaurantes, foram eles a propô-lo: não é algo indispensável para o sucesso económico deles.

2.Os restantes cinco negócios do bairro vendem serviços ou mercadoria. A loja de conveniência tem espaço minúsculo, com a porta sempre aberta, e depende do fluxo dos turistas que fazem pequenas compras. O barulho e os gases de escape fazem parte da mobília – e os donos sonham com a pedonalização. A loja dos vestidos indianos também parece uma toca com uma porta aberta, não ter carros significa que as pessoas finalmente possam notar que a loja existe e entrar, em vez de fugir dos carros.

Também há dois estúdios de beleza: um completamente a favor da pedonalização, e outro – contra. Aquele que está a favor encontra-se na esquina, com um lado que dá à rua dos Mastros, e outro lado – ao troço da travessa dos Mastros já pedonalizado. Puseram a porta na travessa, e nota-se que as pessoas gostam de poder entrar e sair sem o perigo contínuo de atropelamento.

3.Quais são os estabelecimentos que estão contra? Um é o segundo estúdio de beleza, mais uma perfumaria. De todas as interações que tivemos com os donos, percebemos que sem qualquer base factual imaginam o cliente ideal, rico e generoso, a vir de carro, e portanto têm medo de perder este cliente-fantasma. Curiosamente, para defender os próprios interesses económicos, estes dois negócios acusam os restaurantes de serem gananciosos e ameaçam os vizinhos com a rua cheia de esplanadas e clientes barulhentos no caso da pedonalização.



Os moradores

Extrato de uma peça inexistente, cujos heróis são pura ficção.


A Cátia e a chuva não podem conviver no mesmo espaço-tempo. Portanto, a Cátia arranjou um guarda-chuva chamado carro e deixa-o à porta – caso chover.


Os moradores preocupam-se com a pedonalização, mas o salário mensal de cada um não depende disso. Sim, o carro do vizinho estacionado abusivamente irrita, mas não tira dinheiro do bolso e portanto não estimula para uma ação. Os moradores têm um interesse difuso.

Não havendo espaço comum onde estar, não há conspirações espontâneas entre os moradores. Os vizinhos não têm onde se conhecer, e se falam apenas. Cada um acaba por estar escondido na própria casa, e várias vezes fomos nós a apresentar um vizinho ao outro. Descobrimos que havia vizinhos que nem sequer faziam ideia que na rua moram três crianças – só descobriram isso nas nossas manifestações.

Numa rua envenenada pela passagem e estacionamento de carros, não há terreno fertil para um lobby de vizinhos nascer de forma orgânica. As nossas manifestações suspenderam o veneno, e os vizinhos, pouco a pouco, começaram a comunicar entre si, a falar com os donos dos restaurantes, e vimos nascer a primeira confiança.

Conheci pessoalmente 26 pessoas que moram nos Mastros e que assinaram a petição pela pedonalização. Também conheci as 8 pessoas que não o querem. Investi horas da minha vida para perceber o que se passa: às vezes com as chamadas dos vizinhos frustrados às duas de manhã.

Uma moradora já viu a própria criança ser quase atropelada por um taxista. Outra demorou duas horas para pôr o marido na ambulância porque a travessa estava cheia de carros abusivamente estacionados. Todos que apoiam a pedonalização dizem que estão fartos de não poder fazer uma coisa básica: caminhar em segurança. As crianças claramente adoram poder estar fora a brincar, sempre foram as primeiras a sair e participar nas atividades. Descobrimos que quase ninguém tem carro, nem acham que deveria existir estacionamento nas ruas. Querem limpeza, respeito e segurança.

Ao coro dos moradores juntaram-se centenas de vizinhos e trabalhadores da freguesia que passam diariamente na rua, e querem que seja pedonal. E mais centenas que moram noutras freguesias mas passam pelo bairro com frequência. Foi assim que chegámos às 1100 assinaturas.

E quem está contra? Um casal quer estacionar na rua e não lhes interessam as crianças alheias que não têm onde brincar. Os restantes seis estão chateados com os restaurantes cujos clientes fazem barulho na rua durante a noite, e querem vingar-se, o que é compreensível.

Os restaurantes podem ficar abertos até às duas, às vezes até às cinco da manhã. Como não conseguem optimizar as vendas durante o dia devido ao trânsito que afasta os clientes, recuperam o negócio durante a noite – já que legalmente podem. A teoria do interesse concentrado não mente: de facto muitos preferem um ganho imediato e concreto ao ganho nebuloso do futuro pedonalizado.

Nós percebemos logo que o barulho nocturno era o principal conflito, e negociámos com os restaurantes que durante as nossas manifestações a música e as conversas dos clientes na rua acabassem às 23h. Estivemos sempre no bairro a essa hora, andando de porta em porta, relembrando da regra – os restaurantes acabavam por cumprir, mas muitos só porque havia esta nossa pressão. Nos dias da semana, já não se esforçavam com isso, o que levou os moradores sem janelas duplas a ferver, legitimamente, com a raiva – e, infelizmente, a uma interpretação absurdamente doentia da ideia de pedonalização. Em vez de defender o silêncio às 23h em conjunto com os outros moradores, o pequeno grupo frustrado começou a defender a passagem dos carros. Em vez de juntar-se ao projeto e criar um bem comum, ficaram presos no círculo vicioso das más opções.

A raiz do problema está nas políticas públicas da junta e da câmara: em vez de tentar perceber a lógica daquilo que se passa, em vez de promover horários respeitosos em zonas residenciais por um lado, e a pedonalização por outro, preferem dividir e conquistar.

Ironicamente, uma dezena de pessoas com medo da pedonalização, que representam 0,09% do número dos assinantes da petição, têm uma vantagem competitiva: encaixam-se perfeitamente na mundivisão enviesada do presidente da CML Carlos Moedas, PSD, e da presidente da JF Misericórdia Carla Madeira, PS. Estes dois políticos aprenderam a ganhar as eleições com promessas de mais estacionamento, e para a própria sobrevivência preferem defender as políticas de privilegiar o carro.

O nosso teórico da ação coletiva, o Mancur Olson, não tinha então razão em falar da tirania dos pequenos grupos?



Reviravolta dos interesses

Extrato de uma peça inexistente, cujos heróis são pura ficção.


A senhora Matilde tem propriedades. Ser dona de prédios tornou-a dona de opiniões conservadoras. Deixar os inquilinos da rua repensar o que já está pensado pelos proprietários é que não pode ser. Mesmo se isso aumentasse as rendas. Que venha mais polícia a não autorizar o que for.


Ao longo das onze manifestações descobrimos que os interesses são dinâmicos. Chamam-se interesses exatamente porque representam interesses, e não uma postura moral que possa manter-se apesar dos ataques externos. Depois das eleições nacionais, o Carlos Moedas começou a mandar enxames de polícia para dispersar as nossas manifestações. Os agentes fizeram todo um show de intimidação, com alarmes e algemas, tirando telemóveis das mãos. Os patrulhas começaram a pousar-se nas esquinas do bairro cedo, horas antes da manifestação, a vigiar. Em paralelo, a junta da Misericórdia, preocupada com a perda do controlo sobre as iniciativas da freguesia, começou a mandar multas traumatizantes, de dois a quinze mil euros, aos restaurantes: por exemplo, por ter posto uma placa que não deixava os carros estacionar de forma abusiva na travessa supostamente fechada à passagem dos carros. No meio deste cosplay da ditadura, percebemos que a nossa ação de pedonalização converteu-se na defesa dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição.

Só que não se pode esperar que os moradores e os donos dos negócios estejam lá todos para defender os princípios da democracia. Não são ativistas. Cada um têm o interesse específico para defender.

Vimos como um dos restaurantes optou por se afastar das manifestações para não perder clientes, porque ter polícia o sábado inteiro obviamente não beneficia a digestão. Os moradores também não gostam de se acordar e ver a polícia na janela. A frágil confiança que começámos a desenvolver na comunidade foi pisada com as botas dos polícias que o Carlos Moedas mandou para o bairro. O presidente da CML esmagou a raiz da sociedade civil com a arrogância de que “o carro tem que passar”.

Vimos também surgir os novos heróis que não ficaram calados. Na melhor tradição de tragédia clássica, as peripécias das alianças proporcionaram-nos a catarse. A repressão policial obrigou a todos os envolvidos a tomar uma posição, e ajudou-nos a ver nitidamente quem é quem. Reparem: teria sido impossível descobrir isso fazendo só uma ação por ano. Os interesses concentrados e difusos que achávamos que entendíamos ficaram baralhados. Esta reviravolta nos fez notar que dentro dos grupos dos interesses temos, na realidade, uma coleção de grupos com interesses concentrados. O núcleo dedicado à causa redefiniu-se.



Processo formal

No meio do drama com os mensageiros fardados do Carlos Moedas, tivemos a primeira das duas audições da nossa petição na Assembleia Municipal de Lisboa. Passámos umas quatro horas na discussão com todos os partidos. O Livre e o Bloco apoiam. O PS foi dolorosamente preocupante: o portavoz do partido, Miguel Coelho, que também é presidente da junta mais central do país – Santa Maria Maior, que inclui a Baixa e o Chiado – repetiu várias vezes que “a bicicleta é um inimigo público”. Ficou claro: os políticos do bloco central não estão subscritos ao nosso canal no youtube e não aprenderam ainda as bases da mobilidade suave.

Ficámos espantados ao observar as acrobacias verbais do PS na votação sobre o estacionamento nos passeios em Belém – “abstiveram-se”. O PS parece querer concorrer pelos popóvotos do PSD nas próximas autárquicas, e não está disposto a defender os peões. Em vez de reeducar os eleitores, como fazem os políticos do bloco central em Paris, onde as bicicletas já superaram o número de carros, o bloco central aqui faz tudo o que os eleitores formatados pela indústria automóvel pedirem – mesmo quando representam só 0,09% dos interessados, como no caso dos Mastros.

Aprendemos a lição que quando a mesma manifestação é anunciada por um partido – ninguém chateia. Embora a constituição garanta o direito de manifestação a todos os cidadãos, na prática, quando fizemos uma das nossas manifestações com o VOLT, não era preciso sermos empurrados para o chão pelos agentes.

E tivemos mais uma experiência nova e inesquecível. Fizemos as nossas queixas à IGAI, a Inspeção-Geral da Administração Interna, que supostamente deveria verificar se a polícia comporta-se bem. Ao ver os vídeos onde, entre outras ilegalidades, o chefe da polícia tenta tirar o telemóvel da mão, o IGAI diz que os agentes “estavam ótimos”, e ainda por cima acusaram-nos de pôrmos as crianças em risco por estarem na rua nos dias de manifestação pela pedonalização desta própria rua.

É uma lógica sádica que faz rebentar as entranhas. O que nos tem ajudado a manter o foco e a não desistir é o vosso apoio: Anna Calderon, Rui Martins, Elaine Salomão, João Rodrigues, Mariana Seara, Sérgio Branco, Hugo Pereira, Pedro Resende, Natália Feitor e Marta Matos, obrigada por nos terem apoiado nestas últimas semanas com as vossas doações e com as encomendas das t-shirts Cravo Bravo (que entretanto saíram no TimeOut!).

Este treino intensivo de ativismo permitiu-nos sondar as pedras no meio das águas turvas dos interesses e medos. Desnudámos a ditaturazinha municipal do seu traje de democracia. Nos Mastros, encontrámos as pessoas verdadeiramente dedicadas à mudança e reformulámos as nossas alianças. Mais do que nunca percebemos que aquilo que fazemos não é só sobre as bicicletas, ou sobre os passeios. É sobre a nossa frágil liberdade. Temos muitas ideias divertidas como defendê-la.

Queremos torná-lo possível?

Ksenia

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