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Biciviagens, decisões financeiras desastrosas e a semana da mobilidade. Newsletter 40.

Olá, Lisboetas Possíveis,

Três mil e quinhentos euros é quanto têm para gastar nas viagens este ano.

Três mil e quinhentos euros é o valor que não gastei no carro, e digo isto fazendo contas modestas, porque se tivesse um carro de xo doutora, teria uns sete mil euros para gastar nas aventuras. E provavelmente não seria dinheiro meu, seria emprestado, porque a maioria dos veículos em Portugal são comprados a crédito.

Apresentei esses cálculos a André Marquet, gestor de produto e fundador da conferência Productized, que trabalhou com crédito automóvel nas grandes instituições financeiras. Gravámos um vídeo sobre o tema, onde a conclusão dele é inequívoca: comprar um carro é uma decisão financeira desastrosa.

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Com os três mil e quinhentos euros que poupei, este verão fui ver se são verdade as maravilhas que se contam sobre a capital basca, Vitoria-Gasteiz.

Fui sozinha, de bicicleta, com algum comboio no meio. Viajar assim serve-me de detergente: depois de uns quinhentos quilómetros pedalados em modo auto-podcast, aclaram-se as ideias, desaparecem os medos e esquece-se a mesquinhez das batalhas urbanísticas de Lisboa. Fazem-se amizades fora da bolha habitual: o caminho obriga a ouvir as histórias das senhoras na rua, dos peregrinos e dos viajantes. Trabalha-se a resiliência: ao pedalar, é preciso lidar com a ambiguidade de cada curva, cada pedra imprevista e cada gota da tempestade. No final do dia apuram-se sempre as evidências: foste capaz.

Portanto esqueçam aviões, preocupações financeiras e ai-meu-deus. Eis como, graças a uma modesta bicicleta e gastando no máximo 200 euros no comboio, qualquer pode viver uma aventura.

  • Comboio Lisboa - Badajoz. São quatro horas para finalmente abandonar o scroll e ler aquele livro. Custo: 16 euros.

  • Comboio Badajoz - Mérida, a capital da Lusitânia romana. Custo: 6 euros.

Desta vez não pedalei, porque já o tinha feito. Decidi dedicar o meu tempo a ver mais um dos seis museus sobre a história romana e árabe que fazem parte do pass cultural – que custa 16 euros e não tem data de validade, já o uso há dois anos.

  • Comboio Mérida - Plasencia, uma cidade medieval, com o centro fechado aos carros, algo que nunca se viu por cá. Custo: 15 euros.

🚲 Os comboios MD (Média Distância) são os únicos da RENFE (Red Nacional de los Ferrocarriles Españoles) que aceitam bicicletas sem dobrar e sem embalar. Para entrar e sair da carruagem não é preciso fazer um curso de acrobacia, é piso plano. Nenhum outro tipo de comboio permite este luxo, se não são fãs de desmontagem, é com MD.

Em Plasencia o meu objetivo foi o festival internacional de folk, gratuito, aka oferta dos contribuintes estremenhos – onde, curiosamente, descobri a Seiva, uma banda portuguesa com gaitas e adufes.

Também já tinha feito esta distância de bicicleta, passando por Cáceres e enchendo o olhar com o verde das dehesas, ou montes estremenhos. Desta vez pedalei para Coria, Galisteo, a cidade romana do primeiro século Cáparra, dando uma volta ao vale do rio Jerte.

  • De bicicleta desde Plasencia até Béjar pela Via Verde de la Plata. Vias verdes são análogas às ecopistas de Portugal. São caminhos de ferro convertidos em ciclovias rurais. A Via de la Plata atravessa todo o norte da Extremadura e acaba em Béjar, já em Castilla y León.

👉 Para pernoitar, cada um decide como quer fazer. Além do booking e o airbnb dum lado do espectro, e o campismo selvagem doutro, há opções. Para ver a lua antes de adormecer, os campings custam 10 euros a noite, e os muitos albergues peregrinos do Caminho de Santiago funcionam por doação. Há o Couchsurfing de toda a vida, e também o Warmshowers, a rede onde ciclistas hospedam outros ciclistas.

A Via Verde de la Plata é uma pedalada plana, segura, perfeita para quem só começa a usar a bicicleta como meio de viajar. Pelo caminho dá para fazer desvios mágicos. Descobri infinitas cascatas e charcas verdes, ou piscinas naturais, que vêm dos mananciais das montanhas. Aprendi sobre a arquitectura sefardita em Hervás, que tem o bairro judeo dos melhores conservados da península. Há banhos termais fundados pelos romanos em Baños de Montemayor. Um mundo encantado longe das praias superlotadas.

  • De bicicleta desde Béjar até Salamanca pela Eurovelo 1. Está comprovado que quase não há trânsito.

🌱 Os condutores espanhóis respeitam religiosamente os 1.5 m de distância com os ciclistas, há sinais frequentes que relembram esta regra, e notei que sempre sinalizam bem a manobra, algo que aqui seria um milagre em terra. Quase todas as estradas têm berma. Os ciclistas espanhóis que conheci, com um ar dramático, sempre contam as razias que sobreviveram em Portugal, alguns até confessam ter desistido de pedalar entre o Porto e Lisboa, refugiando-se no comboio.

Desde Salamanca sai mais uma via verde, curta e simpática, até Alba de Tormes. Esta pequena viagem convence que és uma personagem saída do quadro da época do romantismo (ou das tropas de Napoleão, para os mais realistas, já que foi lugar de terríveis batalhas).

  • Comboio Salamanca - Vitoria-Gasteiz. Custo: 41 euros. Com tempo, dá para pedalar, mas o meu objetivo foi investigar o urbanismo da capital basca, passando o maior número de dias conhecendo a realidade desta cidade. Queria ver se o sonho não era um fantasma.

O comboio MD que sai de Salamanca passa por Ávila, mais uma maravilha de arquitectura: claro que alarguei a tarde dando uma breve pedalada dentro das muralhas, antes de finalmente chegar a Vitoria-Gasteiz.

Ler os nomes e ouvir falar euskera contribuíram logo para a sensação de ter mudado de planeta. De repente estava numa nova dimensão urbana. Nenhum carro no vasto centro histórico, bicicletas em quantidades de manifestação, gente, gente, gente a conversar, risos, crianças em cada direção, e uma infinidade de rampas rolantes para juntar os vários níveis da cidade. Tudo aquilo que sonhamos em Lisboa é já possível e existe, não é nenhuma utopia. Vivi na pele que dignidade e segurança – com muitas lutas bascas no meio – não eram quimeras da minha andante cavalaria.

  • O devaneio urbanístico durou mais um bocado enquanto pedalava pelas ciclovias de Pamplona, capital de Navarra, mas foi-se dissipando com cada nova paragem do comboio de regresso: em Zaragoza, capital de Aragão, passei infinidades nos semáforos feitos para agradar os carros, em Madrid senti-me no meio de um apocalipse de metal e fumo, em Lisboa chorei ao ver isso no dia em que regressei. Custo de voltar para a nossa realidade: 100 euros.

Ter férias que nos fazem crescer e maravilhar-nos com a paisagem não é questão de quanto ganhamos, mas sim de valores e atitude. Durante esta viagem tantas vezes reparei que viver a vida não é seguir uma autoestrada. A liberdade não é gastar petróleo na jaula da velocidade. Não é obrigatório consumir ideias predefinidas, gastando salários inteiros naquilo que polui e destrói. Afinal, se ler um livro em frente de uma cascata no meio de um bosque, longe dos carros, não é luxo, não sei o que seria.

Aqui podia acabar, desejando-vos muitas biciviajens possíveis, mas esta semana celebra-se a semana europeia da mobilidade.

No entatno, na Lisboa Possível já celebramos o segundo ano da mobilidade. Estamos a preparar uma ação, é possível que haja surpresas – tudo na próxima newsletter🤟. Se gostam daquilo que fazemos, a melhor forma de nos apoiar é com doações regulares, ou encomendando a t-shirt ativista Cravo Bravo, para podermos continuar a agir.

Se Vitoria-Gasteiz é possível, porque não Lisboa?

Ksenia

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