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Acordei numa cama de hospital. Havia um palmo da minha testa afundado, sem osso.

Acordei numa cama de hospital.

Havia um palmo da minha testa afundado, sem osso. Tinham-mo extraído. Para me salvar de uma morte certa.

Acordei desorientado e entorpecido, entre alucinações. Por vezes, dava por mim amarrado à cama. Foi o tratamento possível para aquele traumatismo cranioencefálico que sofrera. A minha perna estava imobilizada numa longa tala, por causa de um joelho fraturado. Foi possível tirá-la poucos dias depois de acordar. Essa fratura, e a de uma vértebra, estavam curadas.

Tinha passado um mês imobilizado, em estado coma.

Insistiam que tinha sido atropelado ao atravessar a rua, a poucos metros da minha casa, na minha terra natal. Eu ficava sempre incrédulo e confuso. Repetiram muitas vezes, porque nunca me lembrava de o terem dito. Mas como?! Como algo assim poderia ter acontecido sem que desse conta?! Não tinha qualquer memória disso. Estas coisas ainda acontecem no século XXI?! Imaginava estes absurdos a acontecerem nas primeiras décadas do deslumbre com o veículo automóvel -- um novo super-poder humano ainda pouco controlado. Não sei de onde me veio a ideia, mas é o primeiro pensamento de que lembro sobre o atropelamento. Foi um pensamento ingênuo, mas não totalmente disparatado. Afinal, o automóvel já está entre nós há um século. Foram muitos os avanços tecnológicos, científicos e sociais, e o amadurecimento da regulamentação do seu uso desde então. Levei tempo a interiorizar que tinha acontecido comigo. Os atropelamentos de que ouvira falar sempre tinham sido distantes. Nunca me havia imaginado vítima de um deles.

Desde estes primeiros momentos de lucidez, estive mais um mês inteiro internado. Passei todo esse tempo muito medicado e com imensas limitações físicas e cognitivas. Não conseguia andar, nem concentrar-me ou lembrar-me do que me diziam. Ainda me fizeram uma segunda cirurgia. Na anterior tinham extraído a parte do osso craniano estilhaçada; e nesta colocaram finalmente a prótese que restaurou a forma da minha cabeça. Saí do hospital de cadeira de rodas e ainda com muita medicação antiepiléptica. Mas muito grato por ter uma segunda oportunidade para viver, e por estar a recuperar rapidamente. Sabia que poucas pessoas, das que entravam ali como eu entrei, saiam como eu saí.

Com o tempo fui percebendo o quão reservados tinham sido os prognósticos durante as primeiras semanas. Os meus familiares e amigos tinham estado à espera da má notícia a qualquer momento. Quando já não estava em risco de vida, haviam-se preparado para conviver com um Nuno diferente, incapacitado para o resto da vida.

Felizmente nada disso aconteceu comigo. Mas hoje sei que existe esse drama que é a vida de pessoas com dano cerebral adquirido e dos seus cuidadores. Sei que, para os jovens, a par das agressões, os acidentes rodoviários são as principais causas deles.

Desde que saí do hospital, passei por longos meses de reabilitação física e neuropsicológica. Não conseguia trabalhar. Os efeitos secundários dos 3 anti-epilépticos que tomava impediam-me de manter a concentração por uma jornada inteira. Tinha tempo livre e houve algumas questões que me obcecaram: Era muito azar ter-me calhado a mim passar por aquele infortúnio? Ou seria algo mais comum do que imaginava? Como acontecem coisas assim? Por que é que acontecem? Por que razão as pessoas com quem falava me pareciam encarar o meu atropelamento com a naturalidade de quem toma conhecimento de um problema de saúde não evitável? Era algo que me causava alguma revolta. Dediquei muitas horas a procurar respostas.

Descobri que é realmente uma epidemia. Um relatório da Organização Mundial de Saúde de 2018 confirmava isso. A sinistralidade rodoviária é a 8º causa de morte em todo o mundo; e a 1º entre as crianças e jovens dos 5 aos 29 anos. 23 % dessas mortes são atropelamentos. Em Portugal, em média, a cada três dias há uma vítima mortal por atropelamento. Também descobri, no entanto, que não tem de ser assim. Portugal está entre os 9 países da União Europeia com mais mortes nas estradas, num número de vítimas acima da média Europeia; e o é o país da Europa Ocidental com mais atropelamentos mortais por milhão de habitantes.

Deparar-me com a estratégia da Suécia, já datada de 1997, foi para mim um momento de reconciliação com o mundo. Afinal havia esperança! O pensamento subjacente à minha revolta de sentir-me incompreendido afinal podia ser verbalizado e estar na base de um importante avanço no contrato social de um país: «Não é eticamente aceitável que pessoas morram ou sejam gravemente feridas nas estradas»! Era a premissa de um imperativo e uma meta muito clara: Zero é o número de mortes ou ferimentos graves que é aceitável nas estradas. A iniciativa ficou conhecida como "Visão Zero", e desde então tem havido iniciativas homônimas por todo o mundo, inclusive agora na União Europeia e em Portugal.

A iniciativa da Suécia foi um ponto de viragem. Passou-se de uma abordagem à prevenção rodoviária orientada por critérios económicos ou à redução de colisões, para uma focada em eliminar colisões que causem mortes ou feridos graves. Passaram a definir-se limites de velocidade com base na probabilidade de morte ou ferimentos graves em caso de colisão. Os limites de velocidade em áreas urbanas começaram a ser definidos considerando essa probabilidade em caso de atropelamento.

Aprendi que a probabilidade de um atropelamento resultar em morte do peão é, pelo menos, 5x mais alta a 50 km/h do que a 30. Por esta razão, a instalação de zonas 30 - onde o limite de velocidade é 30 - em áreas urbanas é reconhecida como uma boa prática, e foi adotada por muitas cidades. Em Espanha, em 2018, impuseram por lei um limite geral de 30 km/h em áreas urbanas. Em 2020, o Conselho Ministerial Mundial de Segurança Rodoviária incluiu, entre as suas 9 recomendações, a de impor limites de velocidade de 30 km/h em áreas urbanas para evitar a morte ou ferimento grave de utilizadores vulneráveis quando ocorre erro humano.

Compreendi que ainda há muito que pode ser feito para mudar a realidade portuguesa; e que as pessoas só aceitam a sinistralidade por não estarem melhor informadas. Eu próprio não estava. Acreditava que ao não ultrapassar 50 dentro de uma localidade, estava a conduzir de forma prudente. Ajustava a velocidade, quando parecia necessário, mas tinha como limite os 50. Agora percebo o quanto estava enganado. Dentro duma localidade, o limite aceitavelmente seguro seria 30. Os locais, em localidades, onde conduzir a 50 é aceitável, são a excepção e não a regra.

Desde então quis mobilizar-me para que as pessoas em Portugal também estejam informadas sobre esta realidade e possam fazer melhores escolhas na sua condução. Quero que todos saibam que quando conduzem a velocidades superiores a 30, em áreas urbanas, onde o espaço é partilhado com peões, ciclistas, motociclistas, estão desnecessariamente a criar um nível de risco que certamente não querem. Ninguém quer estar ao volante de um carro que esmague a vida de alguém. Eu já fui atropelado e vivi todo o sofrimento que isso me trouxe. Sei que não há volta atrás. Mas cada vez que penso que se vai repetir, ou sei que se repetiu, com mais pessoas, revivo a dor. Sei que, se no meu caso a pude superar, em muitos outros essa dor será um fim, ou acompanhará toda uma vida.

Além de todo o sofrimento causado por um atropelamento - à vítima e seus ente-queridos - vejo uma profunda injustiça. A pessoa que se permite conduzir à velocidade que a impede de evitar um atropelamento e de evitar empurrar alguém para uma cama de hospital ou de lhe roubar a vida, teve a oportunidade de fazer uma escolha (que espero que venha a ser cada vez mais bem informada), e aceitou a responsabilidade dela assim que entrou no carro. A outra pessoa que teve o infortúnio de coincidir com a primeira não teve oportunidade de escolher a velocidade a que foi exposto - possivelmente, logo ao sair da porta de sua casa. Às vezes, esta pessoa é uma criança, que nunca foi consultada sobre os riscos que está disposta a aceitar em prol do transporte rodoviário, e que só queria chegar à escola. Ou uma que talvez só queria apanhar uma bola que cai duma porta encurralada por uma estrada - que não chegou a ter tempo para aprender ser-lhe lugar proibido.

Enquanto sociedade civilizada não podemos aceitar isto. Em Portugal, pouco tem sido feito para eliminar os atropelamentos graves. A ANSR teve um Programa de Proteção Pedonal e de Combate aos Atropelamentos em 2018, mas até onde sei, inconsequente. Já não se trata de reconhecer o problema e descobrir de quais soluções dispomos - a que a ANSR já dedicou extensos e inúmeros relatórios. A questão que se coloca é: o que esperamos para as pôr em prática? Quantas mais vidas terão de ser destruídas para agirmos?

Alguns países delegam às autarquias a responsabilidade de delimitar as zonas onde se aplica o limite de velocidade 30. Isto permite uma abordagem minuciosa, porque a sinalização é acompanhada de alterações da estrada, como lombas, estreitamentos, que promovem o cumprimento do limite. Seria ideal, se todas as autarquias tivessem meios para delimitar todas as áreas apropriadas. Outra abordagem possível e pragmática, foi a de Espanha: impor, por lei, um limite geral de velocidade 30 em áreas urbanas. Depois as autarquias podem repor os 50, através de sinalização, onde se justifique. Parece-me que em Portugal esta também seria a opção mais viável. Em 2019 a ANSR publicou um manual de orientações para a instalação de Zonas 30. Começa por referir que, apesar de ser uma reconhecida boa prática, e difundida desde há algumas décadas, em Portugal ainda eram poucas as autarquias que as tinham instalado. Entretanto já passaram 5 anos desde a publicação e não me parece que a situação tenha mudado. Então resta-nos ser pragmáticos como Espanha: alterar o limite geral de velocidade em localidades para 30. Depois os municípios farão os ajustes que considerem prioritários.

A algumas pessoas poderá parecer exagerado, "excessivo". Mas uma coisa é certa: mal não faz. Excessivo só mesmo a velocidade que desnecessariamente multiplica por 5 os riscos para integridade física de seres humanos. A única preocupação que consigo imaginar seria com os tempos de viagem. Sobre isso é importante dizer que o impacto seria muito menor do que possa parecer. Em Londres, a Future Transport London fez um estudo em que concluiu que, por causa das ineficiências do transporte rodoviário - os dramas do trânsito também bem conhecidos em Lisboa - a velocidade média era 12 km/h. Ou seja, mais lento do que quando as pessoas se deslocavam com cavalo e carroça. Parece-me que o mesmo se aplica a Lisboa e outras cidades portuguesas com similar intensidade de trânsito. As vilas e aldeias em que o trânsito não é tão intenso, tendem a ser muito mais pequenas. Estamos a falar talvez de distâncias de 1 a 5 km. Nesse caso são menos 4 minutos de diferença entre fazer todo o percurso a 50 ou fazê-lo a 30. Se a distância for o dobro, 10 km, ainda continuamos abaixo de 8 minutos de diferença - uma demora facilmente suportável quando comparada com as do trânsito.

Os benefícios de limitar a velocidade para 30 em áreas urbanas, vão além da segurança rodoviária. O estudo da Future Transport London sugere que esta redução de velocidade pode contribuir para diminuição de emissão de gases com efeitos de estufa. Além disso, caminhar, andar de bicicleta - algo que todos sabemos ser muito benéfico para saúde física e mental - pode tornar-se numa experiência muito mais agradável, se não estivermos rodeados de máquinas a circular a velocidades que nos podem ser fatais, e a poluir o ar e o som proporcionalmente. Embora não considere que critérios económicos devam ser os prioritários (qualquer vida tem um valor inestimável), posso também mencionar que a ANSR estimou que em 2019 os custos da sinistralidade corresponderam a 1,6% do PIB. Os atropelamentos representam 21% dessa sinistralidade.

Recentemente, por feliz acaso, a Ksenia abordou-me para me pedir que assinasse uma petição, e era exactamente aquela que eu próprio queria fazer: apelar ao parlamento que mude o Código de Estrada para impor um limite geral de velocidade de 30 km/h em localidades. 1338 pessoas já assinaram. É possível! A minha história pode realmente tornar-se numa história do passado de Portugal, que seja difícil imaginar no futuro.

Vamos assumir o compromisso de proteger a vida uns dos outros? Quando conduzirmos pelas ruas da cidade, da nossa terra ou da terra de alguém, não teremos pressa (afinal a vida só tem um destino e certamente não o ansiamos) e lembrar-nos-emos: 30 é mais do que suficiente! Chegaremos onde queremos sem empurrar ninguém para onde não queremos.

Vamos conseguir que a sociedade portuguesa se comprometa com o mesmo? Vamos levar ao parlamento um pedido de segurança e justiça? Vamos salvar vidas e melhorar a qualidade de vida? Não custa nada: é uma assinatura pela qual não nos iremos envergonhar ou sentir culpados; bem pelo contrário!

Não é só a vida dos desconhecidos das ruas que está em jogo, mas também a dos nossos amigos, avós, irmãos, pais, filhos, e a nossa própria. Assinamos pelos desconhecidos das ruas - tão humanos como nós - por aqueles que amamos, e por nós próprios.

Nuno Costa

Já assinaste? https://lisboapossivel.pt/30kmh